Saturday, November 16, 2002

“TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO AR"

A afirmação de Marx pode bem definir os últimos anos de minha vida. Às vezes paro para pensar na minha rotina. Se é que se pode chamar isso que vivo de rotina. Ou o que restou dela. Houve um tempo em que tudo em minha vida era bem definido, épocas e estações, fim de ano e Natal, férias. Eu sabia quando era verão, quando era São João, entendia o que vinha a ser o vocábulo férias e tinha um conceito definido de período de trabalho.

Houve um tempo na minha vida em tudo parecia ter uma época certa para ocorrer. Havia o tempo de ganhar presentes, o tempo de estudar, o tempo de comprar materiais novos, o tempo de ir à praia e sair com os amigos, o tempo de pensar só em provas finais e reclamar com as colegas que faziam pesca, o tempo de viajar com a família.

Hoje nada que se refira a tempo determinado para isso ou aquilo faz mais sentido. As férias não são exatamente férias, o fim do ano acadêmico ocorre no início do ano seguinte e o verão tornou-se apenas parte do ano letivo. As férias do trabalho nunca coincidem com as da faculdade que está eternamente repondo o atraso das greves ano novo a dentro.

Aquela linda festa de fim ano, aquela dos sininhos e das renas, na qual também lembramos algumas vezes do nascimento de Jesus Cristo... isso! O Natal!!!! Aquela festa há muito já perdeu seu encanto. "Outro Natal? Mas de novo? Outro amigo secreto? Presentes, presentes, presentes... E a programação? Sou eu quem faço outra vez?" AAAAAAHHHHHHH!!!!! Para esse bonde que eu quero descer!!!!

O que aconteceu? Aquela era uma época mágica quando, missão acadêmica do ano cumprida, exibindo um lindo boletim sem uma única mancha vermelha, eu descansava merecidamente o descanso dos justos, comia e regalava-me junto à família, ia à igreja na noite seguinte, cantava hinos natalinos, sonhava com as maravilhas do ano porvir, pasma com aquela capacidade que o tempo tinha de se repetir, e se repetir, e se repetir... ah, a rotina nossa de todos os anos, a segurança de saber mais ou menos como tudo deveria ocorrer! Sim, houve um tempo em minha vida que tudo foi mesmo assim.

Em minha inocência de estudante, eu sonhava em passar no vestibular. Verdade seja dita, eu não sabia bem pra quê, mas sonhava em passar. Sabia que tinha que passar. Afinal, bons alunos passam no vestibular, se formam em quatro anos, encontram bons empregos, casam-se, tem filhos, netos, e um dia (talvez os bisnetos cheguem antes desse dia) morrem. Sim, claro, a boa e velha rotina. Talvez alguns prefiram chamar de ordem natural das coisas, eu continuo chamando de rotina.

Hoje tudo parece etéreo, sem lógica, desconexo, como aqueles cubinhos do brinquedo “pequeno construtor” armados por uma criança de dois anos de idade. Parece inútil tentar rearrumá-los, colocar casa sobre casa, telhado ao lado de telhado, torres e pontes de forma sensata. Pois nada mais parece encaixar-se sem que todo o prédio venha abaixo.

Que diriam meus professores de escola se soubessem que a aluna modelo deles, continua na faculdade 6 anos depois de passar no vestibular?

É bem verdade que eu vivo um certo tipo de rotina semanal. Sei mais ou menos o que vou fazer cada dia da semana. Mais ou menos...? Como colocar isso? Eu tenho uma vaga idéia do que vou fazer e de onde vou estar, lembrando que esse é um schedule flexivel e mutante a cada 2 ou 3 meses, algo que eu prefiro chamar de espiral downhill. Hoje acordo em Salvador, amanhã em Feira. Leio a Bíblia com Joao Pedro e o levo à escola. Hoje escova, amanhã EBD. Hoje passo agua na farda do trabalho amanhã ponho de molho aquelas meias sujas... da semana retrasada??? Que vovó não o saiba!!! Se ela abre meu guarda roupa eu tou ferrada! "Ah... e aquela entrevista? Ligo pra você onde?" "Rapaz, liga pro meu celular e eu digo onde estou."

E então eu vou vivendo, empurrando essa não-rotina, porque não tem outro jeito mesmo, esperando que algum dia, algo restaure um mínimo de uma rotina definida, com períodos específicos para cada tipo de atividade, e ainda assim me pergunto “Será que quando isso acontecer, eu ainda vou saber viver daquele jeito?”